Código da Vivência

terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

Os últimos adeptos...

Artigo da autoria de A. Magalhães, publicado numa coluna do JN, que vem na sequência da opinião que manifestei no Bancada Norte sobre o tema das claques. O texto refere-se aos Super Dragões mas é quase aplicável a qualquer outra cor clubística. Pela importância da sua mensagem, não resisti em transcrevê-lo na íntegra:

Quando cheguei ao Estádio do Dragão, onde assisti ao F.C. Porto-Paris St. Germain, estranhei encontrar um anúncio da cerveja Carlsberg no meu lugar cativo. Como se já não bastasse estar a meio da bancada Vodafone a olhar para a equipa da camisola Revigrés.
Porém, não era esse o problema. O lugar já não me pertencia, explicaram-me os companheiros de desgraça. Tinha sido, tal como outros em volta, disponibilizado pelo clube para os convidados dos patrocinadores da Liga dos Campeões, apesar de ter sido comprado quando o estádio ainda era um esboço de cimento e estar pago até ao final da época. Os stewards encaminhavam-nos para um recanto esconso perto de um topo, lembrando que o director-geral da SAD já nos tinha enviado uma carta a avisar da mudança. Era verdade, mas eu não abrira a minha, convencido de que estavam outra vez a tentar vender-me seguros ou apartamentos.
Naturalmente, houve renitência, discussão. Faz parte da nossa natureza criar apego a um lugar, mesmo que ele não passe de uma cadeira de plástico. No auge da confusão, ocorreu-me então que estava perante um acontecimento exemplar, definidor de um tempo em que velhos adeptos valem menos do que ocasionais convidados de patrocinadores. Veja-se o modo como foram distribuídos os bilhetes para as duas finais europeias, com o bolo a ser oferecido aos parceiros comerciais enquanto os adeptos disputavam as migalhas entre si, de modo degradante. Já aí, em Sevilha e Gelsenkirschen, havia frívolos convidados de patrocinadores a ocupar o lugar de fiéis adeptos.
Em tempos que já lá vão, os clubes eram dos seus associados, ou seja, de quem os amava. Agora, são de quem os patrocina ou se disponha a comprá-los. Foi a isto que nos levou a alucinada mercantilização do futebol, a qual destruiu a natureza e as conotações simbólicas dos clubes. E até Joseph Blatter, depois de a FIFA ter acalentado o monstro, tornando-se ela própria numa agência internacional de negócios, se veio agora queixar. É que o monstro já não ameaça só os alicerces míticos do jogo, é todo um edifício que pode desmoronar-se.
O que vemos nós por aí? Clubes falidos, outros à venda ou a naufragar em passivos galácticos e outros ainda que nascem já como empresas, sem adeptos, como o Algarve United. Num mundo assim, quanto vale a imaculada camisola do Barcelona, sem publicidade, memória gloriosa do velho futebol? Só o futuro dirá quanto terão eles ganho ao não vender por dinheiro nenhum o símbolo máximo do clube.
Quanto aos pobres adeptos, esvaziados de concreção e substância, têm cada vez mais uma configuração folclórica, residual. Transformados em consumidores que também se consomem na combustão comercial, são hoje meros clientes que os clubes tratam com hipócrita deferência mas sem verdadeiro respeito. Porém, e por mais que lhe vendam a nova realidade das SAD, eles não conseguem associá-la aos seus afectos e sentem-se enganados por verem dominar a razão mercantil, que é pagã, sobre o respeito pelo símbolo, que é sagrado. Daí o desconforto de sentirem que todos os dias perdem qualquer coisa mais importante do que um lugar central no estádio.
Mas será que todos os adeptos foram submetidos? Nem pensar. No topo sul do estádio há um grupo de irredutíveis cujo amor não se despedaça contra a muralha tecnocrata. Aí, no seu reduto próprio, de que ninguém ousa dispor, os Superdragões impõem a sua vibrante natureza de adeptos insubmissos. Porém, eles não se limitam a agir durante os jogos, onde nos fazem ouvir até o seu silêncio, também invadem os treinos para oferecer o seu ponto de vista sobre as coisas, negoceiam com os dirigentes as suas quotas de bilhetes e o resto, insultam e ameaçam os jogadores que não deixam a pele em campo.
Podemos criticar os seus excessos, os quais, aliás, têm mais de provocação simbólica do que verdadeira ameaça, mas é preciso reconhecer que são os guardiões de poderes irremediavelmente perdidos. Olhem bem para eles porque são o que resta de uma velha categoria em extinção. Eles são os últimos adeptos.

1 Comments:

At terça-feira, fevereiro 07, 2006, Blogger VerDesperto disse...

Este texto é brilhante e já o tinha lido. As claques... o eterno problema das claques... se eu contasse o que sei e o que vivi nas chamadas claques grandes da super liga... via-se a hipocresia que nunca nenhum jornalista fala. Enfim, belisca-te muito porque cada vez mais me convenço que o 25 de abril foi uma ilsuão óptica.

 

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